A história dos jogos de arcade e consoles é marcada por grandes inovações e disputas judiciais que moldaram a indústria dos videogames.
Em se tratando de Propriedade Intelectual, não há um caso de violação de trade dress amplamente reconhecido como o “primeiro”, já que, historicamente, a proteção de trade dress na indústria de jogos tem sido menos comum do que outras formas de proteção, como Direitos Autorais ou Direito Marcário.
Alguns casos recentes envolvendo questões de trade dress em jogos de videogame vêm ganhando destaque, mostrando a importância da proteção do conjunto imagem para os jogos eletrônicos.
Hoje, no entanto, vamos discutir aquele que pode ter sido o primeiro caso que tratou da proteção de trade dress em sede de jogos eletrônicos, ainda que seu debate tenha, fundamentalmente, girado em torno de Diretos Autorais.
PAC MAN: Uma Revolução no Mundo dos Jogos
Lançado em 1980 pela Midway e, na sequência, licenciado pela Atari para consoles, PAC MAN rapidamente se tornou um dos jogos mais icônicos da história dos videogames.
A desenvolvedora, Midway, tinha como objetivo atrair mulheres para o mundo dos jogos de arcade, criando um jogo que não fosse violento. Rapidamente, o personagem amarelo, que percorre labirintos comendo pontos e evitando fantasmas, conquistou uma legião de fãs ao redor do mundo.
A Atari percebeu que o jogo de arcade seria um grande sucesso também para os consoles e investiu milhões de dólares para obter uma licença exclusiva para os seus videogames.
Hoje, ao olhar um jogo com a estrutura da foto abaixo, é difícil alguém pensar que não se trata do PAC MAN:
A Tentativa de Licenciamento do PAC MAN pela Philips e o nascimento do KC Munchkin
Antes da chegada do Atari no mercado, o Magnavox, da Philips/Odyssey, era um dos consoles mais vendidos no mundo.
Reconhecendo o sucesso de PAC MAN, a Philips tentou licenciar o jogo exclusivamente para o seu console Magnavox. Entretanto, com o licenciamento já garantido pela Atari, com exclusividade, a Philips decidiu criar seu próprio jogo, mas com conceitos semelhantes.
Para tanto, a Philips instruiu seus desenvolvedores a criarem um jogo com o conceito do PAC MAN, sem ser o PACMAN, buscando aproveitar da ideia/conceito, que não possui proteção por Direitos Autorais.
KC Munchkin foi lançado cerca de 1 (um) ano após PAC MAN, apresentando o mesmo conceito de maze-chase game, ou seja, o de um personagem que navega por labirintos coletando itens, mas com algumas diferenças de design e cores.
O Caso PAC-MAN v. KC Munchkin
“Atari, Inc. v. North American Philips Consumer Electronics Corp.”, conhecido como o caso PAC-MAN v. KC Munchkin, iniciou quando, em 1982, a Atari processou a Philips por infração de Direitos Autorais, alegando que o jogo da Philips, “KC Munchkin!”, desenvolvido para o console Magnavox Odyssey2, era substancialmente semelhante ao popular jogo da Atari, “PAC-MAN”.
Embora o foco principal da disputa tenha sido a infração de direitos autorais, a questão da similaridade na aparência e na sensação geral (total look and feel) dos jogos levantou discussões relevantes sobre trade dress.
Argumentos Atari v. Philips
Argumentos da Atari:
1. A Atari possuía direitos exclusivos de PAC MAN.
2. Argumentou que o jogo “KC Munchkin!” se assemelhava demasiadamente ao “PAC-MAN”, não apenas em termos de jogabilidade, mas também na aparência visual geral e na estética do jogo.
3. Representantes da Atari visitaram lojas de videogames e constataram que vendedores se referiam ao jogo da Philips como “Um jogo como o PAC MAN” ou “Odyssey’s PAC MAN”.
4. Alegaram violação de Direitos Autorais e concorrência desleal.
Argumentos da Philips:
1. Apontaram diversas diferenças visuais e de jogabilidade específicas, como pontos em movimento, variações nos labirintos e mudanças nas características faciais e cores dos personagens.
2. A primeira instância concordou com a defesa da Philips, argumentando pela falta de uma semelhança substancial entre os jogos.
3. Tinham o entendimento que o KC Munchkin era completamente diferente do PAC MAN, e para evitar ainda mais a possível associação, o coordenador do projeto demandou alterações como: o gobbler ser da cor azul, bem como que o jogo não fosse marketeado como PAC MAN.
Fundamentação e Decisão Judicial
O caso exigiu do tribunal uma análise detalhada dos jogos para determinar se KC Munchkin infringia os direitos autorais de PAC MAN. Inclusive, é possível encontrar a descrição completa dos jogos na decisão, o que demonstra que, para a boa análise e julgamento do caso, foi necessário que o julgador realmente entendesse o que estava sendo discutido, sendo obrigado a, literalmente, jogar ambos os jogos para compreender a extensão dos direitos que estavam em disputa.
Recortes de trechos da decisão, descrevendo o funcionamento e as características de cada um dos jogos.
Nesse compasso, compartilhamos trechos retirados da decisão para o fim de mostrar que, além da discussão sobre Direitos Autorais, o tribunal utilizou de conceitos e testes relacionados ao trade dress e concorrência desleal para solucionar o litígio:
Em uma primeira análise, a obra audiovisual dos Autores não é protegível pelos direitos autorais, no entanto, até um certo limite, seus elementos fixados (formas, tamanhos, cores, sequências, disposição e sons) conferem algo de “novo ou adicionais à ideia/conceito”.
Assim, aplicando o teste da abstração, pode-se dizer que o jogo dos autores é elaborado em termos abstratos, assim como são as regras de um jogo, afinal, trata-se de um jogo de labirinto, em que o jogador pontua ao manter o personagem principal dentro de várias passagens e, ao mesmo tempo, evita colisão com determinados oponentes ou persegue outras figuras que se movem aleatoriamente dentro do labirinto. (Conceito/ideia)
O áudio e os detalhes do jogo são as partes protegíveis da ideia de um jogo de labirinto. Ademais, certas características do PAC MAN devem ser tratadas como scenes a faire e receberão proteção apenas contra cópias idênticas. (Comum, não distintivo) O labirinto e a tabela de pontuação são dispositivos padrões de jogo, e as saídas do túnel nada mais são do que um conceito comumente utilizado, adaptado a um jogo de perseguição no labirinto. Da mesma forma, o uso de pontos fornece um meio pelo qual o desempenho de um jogador pode ser avaliado e recompensado com o número apropriado de pontos e para informar o jogador sobre seu progresso. Portanto, o desenho do labirinto, a tabela de pontuação e os pontos de KC Munchkin são suficientemente diferentes para impedir uma conclusão de infração fundamentada em direitos autorais. (Funcionalidade)
No entanto, é a apropriação substancial dos personagens do PAC MAN que exige a reforma da decisão do tribunal de primeira instância. (Conjunto imagem)
Outros jogos omo RallyX e Take the Money and Run, ilustram formas diferentes de como um jogo de labirinto pode ser expresso. (Não funcional)
Outros jogos, mesmo conceito
(…)
Embora numerosas diferenças possam influenciar as impressões do observador comum, “pequenas diferenças entre uma obra protegida e uma obra acusada não impedirão a conclusão de infração” quando as obras forem substancialmente semelhantes em outros aspectos. A reprodução exata ou quase identidade não é necessária para estabelecer a infração. (Consumidor médio e Conjunto imagem)
Ao comparar as duas obras, a primeira instância se concentrou em certas diferenças em detalhes e aparentemente ignorou (ou pelo menos não conseguiu articular) as semelhanças mais óbvias. A condição sine qua non do teste do observador comum, entretanto, é a semelhança geral, e não as pequenas diferenças entre as duas obras. Ao analisar duas obras para determinar se são substancialmente semelhantes, os tribunais devem ter cuidado para não perder de vista a floresta por conta de suas árvores. (Conjunto imagem)
Vários varejistas e vendedores descreveram o jogo referindo-se ao PAC MAN. Comentários de que KC Munchkin é “PAC MAN da Odyssey” ou “um jogo PAC MAN” refletem especialmente que pelo menos alguns observadores leigos veem os jogos como semelhantes. (Público consumidor e distintividade) (Secondary meaning)
Principais Discussões:
Ao longo da decisão, o tribunal citou as legislações pertinentes, bem como buscou aplicar alguns testes já consagrados, buscando na jurisprudência casos semelhantes e que poderiam servir para o bom deslinde da disputa. Vejamos:
1. Lei de Direitos Autorais (Copyright Law of the United States): Protege elementos expressos e fixados, mas não conceitos ou ideias. (Reyher v. Children’ Television Workshop, 533 F.2d 87, 90 (2d Cir.); 17 U.S. Code § 102 – Subject matter of copyright.)
2. Teste do Observador Comum (ordinary observer test): Se o observador comum considera os jogos esteticamente semelhantes no todo, pequenas diferenças não impedem a conclusão de infração. (Peter Pan Fabrics, Inc. v. Martin Weiner Corp., 274 F.2d 487, 489 (2d Cir, 1960); Roth Greeting Cards v. United Card Co,. 429 F.2d 1106, 1110 (9th Cir. 1970).
3. Teste das Abstrações: Quando padrões genéricos tornam o trabalho comum, a proteção é limitada. (Nichols v. Universal Pictures Corp., 45 F.2d 119, 121 (2d Cir. 1930), cert. denied, 282 U.S. 902, 51 S.Ct. 216,75 L.Ed. 795 (1931)
4. Teste do conceito de unidade da ideia-expressão: Quando a ideia e a expressão são inseparáveis/indistinguíveis, os Direitos Autorais somente protegerão cópias idênticas. (Herbert Rosenthal Jewlry Corp. v. Kalpakian, 446 F.2d 738 (9th CI. 1971).
5. Conceito de Scenes a Faire: Características indispensáveis ou padrão no tratamento de um tema específico não recebem ampla proteção. “Referem-se a incidentes, personagens ou cenários que são, na prática, indispensáveis, ou pelo menos padrão, no tratamento de um determinado tópico”. (Alexander v. Haley, 460 F.Supp. 40, 45 (S.D.N.Y 1978).
Decisão Final:
Ao final do processo, o tribunal concluiu que, apesar das diferenças pontuais, KC Munchkin capturava o “total concept and feel”, ou seja, o conjunto-imagem, de PAC MAN, sendo substancialmente semelhante.
Isto é, apesar da discussão tratar, fundamentalmente, de direitos autorais, a decisão também considerou aspectos de trade dress, como anterioridade de uso, distintividade, não funcionalidade e probabilidade de confusão do conjunto-imagem.
A conclusão foi que a semelhança geral dos jogos poderia induzir os consumidores a erro, associando KC Munchkin diretamente a PAC MAN. (Section 43(a) of Lanham Act (15 U.S.C. § 1125(a)).
Por fim, o tribunal reformou a decisão de primeira instância, favorecendo a Atari:
“Com base na comparação ocular dos dois trabalhos, concluímos que os demandantes mostraram claramente probabilidade de sucesso nos seus pleitos. Embora não seja “virtualmente idêntico” ao PAC MAN. KC Munchkin captura o “total concept and feel” e é substancialmente semelhante ao PAC MAN. Este caso está muito longe daqueles em que o réu se apropriou apenas da ideia do jogo, mas adotou a sua própria forma única de expressão ou onde pequenas variações ou diferenças foram suficientes para evitar a responsabilidade porque a forma de expressão estava intrinsecamente ligada ao próprio jogo.”
Trade Dress e Jogos de Videogame
Embora o trade dress geralmente se refira à aparência visual distintiva ou à embalagem de um produto, ele também pode se estender ao conjunto de elementos visuais de um jogo.
A disputa entre PAC MAN e KC Munchkin, além de ser um marco na história dos videogames e das leis de direitos autorais, destacando a importância da proteção da originalidade das obras e a necessidade de se distinguir entre a proteção de conceitos e as suas expressões específicas, trouxe em sua análise requisitos ligados ao instituto do trade dress e concorrência desleal, abrindo mais um caminho para a proteção dos videogames, em especial daqueles que adquirem distintividade do seu conjunto-imagem, além de seus títulos/marcas serem facilmente reconhecidos pelos seus consumidores, mesmo sem que esses precisem ver, literalmente, as suas marcas.
Importância da Decisão
PAC-MAN vs. KC Munchkin, frequentemente citado em discussões sobre Propriedade Intelectual de jogos de videogame, estabeleceu um precedente importante para a indústria, pois, além de se concentrar principalmente em infração de direitos autorais, ele também aborda questões importantes de trade dress.
A proteção de trade dress permite prevenir a confusão do consumidor, protegendo o conjunto de elementos visuais distintivos que identificam a marca/origem de um produto ou serviço.
Nesse sentido, o caso mostrou que, além dos direitos autorais, os elementos visuais que formam um conjunto-imagem distintivo de um jogo, desempenhando função para-marcária, também podem gozar da proteção conferida pelo instituto do trade dress.
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